quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Assombração

Heloisa Seixas

Clara deu uma risada nervosa quando ouviu a insistência de Clarice ao telefone:

— Eles fazem questão de que você vá. Querem que você conheça o sítio mal-assombrado.

— Mas... você tem certeza de que vai ter lugar para todo mundo? — indagou. Sabia que Clarice iria com os dois filhos. Ela mesma teria de levar seu menino, pois o ex-marido estaria viajando no fim de semana. Contando com os donos do sítio e mais um casal convidado, que ia com o filho adolescente, seriam ao todo dez pessoas. — Talvez fosse melhor nós irmos num fim de semana em que eles não tenham outros convidados — argumentou.

— Não seja boba, Clara. Tem lugar, sim. Senão eles não teriam insistido tanto. Não adianta vir com desculpas. O que há? Está com medo?

— Claro que não! Você sabe muito bem que eu não acredito nessas coisas — retrucou.

Não, não era medo. Sentia uma inquietação. Sim, estava inquieta, tinha de admitir. Como se pressentisse a aproximação de um perigo. Mas sabia que isso era uma bobagem. O que poderia haver, afinal? Seu filho, Pedro, de sete anos, estava louco para ir. E ela própria ficara curiosa com as histórias de fantasmas.

Vinha ouvindo as tais histórias havia meses, desde que conhecera Clarice. Os olhos castanhos da amiga brilhavam de excitação quando ela as contava.

Clarice. Era engraçado pensar que só a conhecia havia... quantos meses? Junho, julho, agosto, setembro. Quatro. Só quatro meses. Sentia como se fossem amigas de infância. As crianças também. Pedro e os dois meninos se entendiam e desentendiam como irmãos. E de certa forma o eram. Pelo menos Pedro e Paulo. Os dois, o filho de Clara e o filho mais novo de Clarice, haviam nascido na mesma época, com uma diferença de apenas dois dias. Nada demais, não fosse por um detalhe, descoberto por acaso: um dia em que Clarice aparecera com a certidão de nascimento de Paulo, as duas viram, com grande surpresa, que o nome da testemunha no documento era do ex-marido de Clara, pai de Pedrinho. Como é de praxe em cartórios, os pais que estão na fila do registro assinam como testemunhas uns dos outros. A coincidência engraçada era que os ex-maridos de Clara e Clarice tivessem ido ao mesmo cartório, no mesmo dia e na mesma hora para registrar os filhos, sete anos antes de elas duas se conhecerem.

Clara sorri, lembrando-se do espanto de Clarice ao fazer a descoberta. Sempre tão engraçada, tão alegre, Clarice prendia a atenção de todos onde chegava. Era uma mulher bonita, de cabelos. muito negros, pele morena aveludada como a superfície de um pêssego, olhos de um castanho líquido que pareciam a todo momento umedecer seus longos cHios. Uma pessoa tão doce... Pena que se metesse em tantas loucuras. A própria Clarice lhe contava suas aventuras, suas noites de bebedeiras e drogas, a sucessão interminável de namorados, como se quisesse se vingar dos dez anos de casamento que tanto a haviam atormentado. Errava pelos bares à noite em companhia de pessoas que pareciam dispostas apenas a sugá-la, aproveitando-se de sua bondade, gravitando em torno dela como vampiros sedentos. Bebia demais e quanto mais se misturava àquela gente mais compulsiva se tornava. Drogava-se com freqüência, às vezes mesmo subindo morros com os companheiros de noitada, em busca de droga. Clara temia por ela, pelas crianças. Procurava dar-lhe conselhos, mas de nada adiantava. Havia nela, naquela mulher tão delicada, uma poderosa sede de autodestruição, que a subjugava. O tal casal dono do sítio mal-assombrado era talvez um dos poucos de seu círculo de amigos, além da própria Clara, que não vivia metido em loucuras.

O sítio. O sítio mal-assombrado. Ia afinal conhecê-lo. Clarice falava tanto nele... Clara não podia negar que estava curiosa. Outro dia, num jantar em casa de amigos comuns, o sítio mal-assombrado fora o assunto da noite. Clara lembrava-se bem. Todos falavam com naturalidade dos fantasmas, parecendo mesmo divertir-se com a situação. Ninguém tinha medo. Clara tampouco. Na verdade ouvia aquilo com grande dose de incredulidade. Mas sentira uma sensação desagradável ao ouvir dos donos do sítio a explicação para tanta assombração: segundo eles, o antigo dono do lugar se suicidara lá, enforcando-se junto a uma bela cachoeira existente dentro da propriedade.

Clara arrepiara-se ao ouvir aquilo. Tinha horror a enforcamentos. Desde muito pequena, quando ouvia na escola as histórias de Tiradentes, fixava na professora os olhinhos muito abertos, sentindo um nó na garganta, como se uma invisível corda ali lhe apertasse. Perguntara ao casal como eles tinham ficado sabendo daquilo. Por intermédio dos próprios herdeiros, de quem haviam comprado a propriedade, disseram. Clara engolira em seco.

Eram muitas, as histórias. Todos ou quase todos os amigos do casal que já haviam passado dias no sítio tinham um caso para contar. Um rapaz, de nome Caio, relatara que certa vez vira uma mulher agachada chorando num canto da sala. Ia passando distraído quando dera com ela. Voltara-se para olhar uma segunda vez, a fim de se certificar do que estava vendo, e ela já havia desaparecido. Alguém perguntou se ele não tinha bebido muito naquela noite e ele teve de admitir que sim. Todos riram.

Outra amiga relatara sua experiência, dizendo ter acordado no meio da noite com um infernal barulho de pratos e panelas na cozinha. Como muitas pessoas estavam hospedadas no sítio naquele fim de semana, levantara-se furiosa pensando em reclamar com a turma que fazia o barulhento lanche da madrugada — e ao chegar ao fim do corredor se deparara com a cozinha silenciosa e vazia.

Havia também o caso do suspiro. Este se dera com Pablito, rapaz solteiro e mulherengo que era velho freqüentador dos fins de semana assombrados. Na ocasião, ainda se vangloriava de ser um dos poucos que jamais tinham visto uma alma penada na casa. Certa noite, já estava deitado sozinho no quarto, com as luzes apagadas, quando ouvira, a seu lado na cama de casal, um suspiro. Um suspiro profundo e sentido, um suspiro de mulher. Logo imaginara que alguma das moças hospedadas na casa fora refugiar-se a seu lado. Levantara-se, intrigado. Fora, às apalpadelas, até a parede junto à porta em busca do interruptor, já que o abajur estava sem lâmpada. Acendera a luz. A cama estava vazia. E no mesmo instante ele se lembrara, sentindo-se gelar da cabeça aos pés, de que havia trancado a porta por dentro antes de se deitar. Desde então nunca mais duvidara das histórias de assombração.

Clara ouvira aquelas histórias com curiosidade mas, por um motivo ou por outro, fora adiando a ida ao sítio. Agora, ao que parecia, chegara a hora. Tempo de enfrentar os fantasmas, pensou, com um sorriso de incredulidade. Dali a três dias.


Já lhe tinham dito que o sítio era um local belíssimo, encravado num vale em meio a montanhas, mas Clara se surpreendeu. Que lugar! Assim que os carros deixaram a Rio-Petrópolis, tomando à direita um caminhozinho de terra, todo esburacado, ela sentiu como se penetrassem um mundo intocado pelo homem. O caminho de terra, que só dava passagem para um carro de cada vez, cortava a mata fechada, com cipós pendurados. Nas margens, tapetes de marias-sem-vergonha e no ar um cheiro penetrante de folhas apodrecidas.

Era úmido ali. A mata quase se fechava sobre a estradinha e, como ainda havia muita névoa, o caminho se tornava mais sombrio. Fazia frio, muito frio. Fecharam as janelas. Vidros embaçados, mal se enxergava o caminho à frente e os três carros seguiam devagar, pelo chão de barro escorregadio. Risadas nervosas cortavam o silêncio.

De repente, Clara viu surgir o vale à sua frente, deslumbrante. Era um descampado cheio de sol, cercado de montanhas sombrias por todos os lados. A trilha úmida terminava de repente, desembocando em toda aquela luminosidade que quase cegou.

Saltaram. A casa, daquelas antigas, com varandões em arco e janelas pintadas de azul colonial, ficava a um canto, junto a um imenso flamboyant. À frente, estendia-se o gramado, salpicado por troncos com bromélias e alguns arbustos. Era um vale descarnado em meio às montanhas cobertas por mata fechada, num lindo contraste.

— Não parece uma casa mal-assombrada — comentou Clara.

Clarice sorriu, sem nada dizer. E a amiga do casal, mãe do adolescente, dando de ombros:

— De noite é que vamos saber.


A primeira coisa que fizeram, depois de deixar a bagagem nos quartos, foi sair para conhecer a cachoeira, o lugar mais bonito do sítio, pelo que todos diziam.

Do lado esquerdo da casa, havia uma pequena trilha na mata que levava até lá. Um caminho menos sombreado do que a estrada de carro. Ali, a luminosidade penetrava pelo trançado das folhas. Junto à trilha, grandes touceiras de colônias, lírios e xaxins formavam a vegetação.

À medida que caminhavam, Clara sentia como se a mata os envolvesse, com seus cheiros de flores e terra úmida, seus murmúrios e zumbidos que se fundiam em uníssono, como uma respiração. Caminharam assim durante algum tempo, até que começaram a ouvir o som das águas. Chegavam ao fim da trilha. A pequena clareira, ornada pelas pedras do regato, foi o ponto onde todos pararam, hipnotizados pela beleza do lugar. A cachoeira era um santuário. Um fio d'água se despejando sobre um laguinho verde-escuro, pequeno e gelado, como um cenário de cinema. Era tudo tão perfeito, tão harmônico e bonito, que o primeiro pensamento de Clara foi que era difícil entender como alguém podia se matar num lugar assim. Arrepiou-se ao pensar nisso.

Ficou por um tempo sentada sobre uma pedra limosa, olhando toda aquela beleza. Depois tomou coragem e mergulhou na água cor de esmeralda. Tão gelada que sentiu vontade de rir e chorar. Começou a nadar para se aquecer. Nadou em direção à queda-d'água. Quando já sentia os respingos gelados sobre sua cabeça, parou de nadar e olhou para cima. A água parecia fumaça de gelo seco. E os respingos que lhe caíam no rosto produziam uma sensação de choque na pele. Ficou assim por uns segundos, tentando manter os olhos abertos apesar da água que caía com força.

Foi quando sentiu a tontura. Uma tontura tão forte que precisou se segurar na parede de pedra para não afundar. Agarrou-se a ela, respirando fundo, os olhos arregalados, com a sensação de que ia desmaiar. Procurou acalmar-se. Sabia que não havia perigo, já estava passando. E depois todos estavam ali, nada de mal lhe poderia acontecer. Com o coração batendo forte, nadou de volta para a parte rasa.

Chegou ofegante.

— Está fora de forma, hein? — brincou alguém.

Clara deu um sorriso sem graça:

— Foi o frio.


Quando a água ia ficando cada vez mais gelada e as crianças já começavam a reclamar de fome, decidiram que era hora de voltar. Tomaram outra vez a trilha estreita, um atrás do outro, por entre as árvores. Clarice ia bem à frente de Clara, sempre brigando com o filho, Paulo, que ameaçava embrenhar-se no mato a cada instante.

De repente Clara sentiu o cheiro. Um cheiro doce e inconfundível de caju. Caju maduro, já meio pisado, quando dele escorre líquido, fazendo juntar mosquitos. Cheiro forte e gostoso, quente, que destoava da paisagem fria da montanha.

— Que engraçado... que cheiro de caju! — disse para Clarice, à sua frente.

Ouviu com nitidez a resposta dela, embora Clarice não chegasse a se virar para trás.

— É ele. Ele gostava muito de cajus.

Clara bateu no ombro da amiga.

— Ele quem?

Clarice virou-se e olhou para ela.

— O quê?

— De quem você estava falando? — insistiu Clara.

Clarice franziu a testa, com ar debochado.

— Ficou maluca, é? Do que você está falando?

— Eu estava falando sobre o cheiro de caju. E você respondeu alguma coisa sobre alguém que gosta de cajus...

Clarice olhou para ela, espantada.

— Eu? Eu não abri a boca! — disse.

E depois de uma pausa:

— ... e além do mais com o frio que faz nestas montanhas, não sei como você pode estar sentindo cheiro de caju. Um pé de caju aqui morreria congelado...


A noite chegou muito fria, mas nada assombrada. Clara sorriu ao pensar nisto. Estivera inquieta todo o dia, por causa dos acontecimentos estranhos na cachoeira, mas já quase se recuperara. A tonteira, claro, fora conseqüência do frio. Ou estômago vazio, talvez. E o comentário de Clarice... bem, com certeza se enganara, ouvira errado. Ou talvez fosse molecagem de Clarice, para testar seu medo. Sorriu. Respirou fundo. Precisava livrar-se daquele aperto no peito. O lugar era tão bonito, tudo tão agradável. Não havia razão para se sentir inquieta.

Assim que a noite caiu completamente, todos foram até a varanda olhar o céu. Um céu de planetário. Fundo negro e estrelas, estrelas, estrelas, como só é possível ver num lugar assim. E em torno das montanhas, suas sombras imensas, silenciosas. Nenhum ponto de luz na mata, nada. Nenhum vestígio do ser humano.

Depois do jantar, aquecidos por vários copos de vinho tinto, foram todos lá para fora. As crianças também, muito bem agasalhadas, pois o frio era cada vez mais cortante. Iam, por sugestão dos donos da casa, brincar de se pendurar no céu.

Estenderam cobertores no gramado em frente à casa e se deitaram, depois de apagar todas as luzes. A brincadeira consistia no seguinte: cada um devia ficar deitado, de olhos fixos no céu, e tentar imaginar que estava em cima dele, pregado em uma abóbada e vendo o infinito a seus pés. Preso ali na crosta terrestre pela força da gravidade, como no brinquedo rotor dos parques de diversão.

Clara sorria com excitação. Depois de alguns minutos imóvel ali, a sensação começou. Logo já era perfeitamente nítida. Sentia mesmo como se estivesse no alto, pendurada, grudada, com o céu lá embaixo. Era uma sensação deliciosa e surpreendente.

Até as crianças pareciam hipnotizadas pela ilusão da brincadeira. Logo descobriram que quando alguém falava a sensação se perdia. E ficaram em silêncio.

Ouviam apenas os grilos, os murmúrios da mata. Clara estremeceu com o frio, mas esforçou-se para se manter imóvel, sabendo que do contrário quebraria o encanto, perderia a sensação de euforia e domínio, de estar acima do céu, senhora do infinito.

Era impressionante o silêncio. Parecia fechar-se cada vez mais em torno dela, denso, quase palpável. Ouvia os zumbidos da mata mais e mais fortes, de novo como uma respiração, como lhe parecera na cachoeira.

Teve de repente a sensação de estar só ali, apenas ela e as estrelas na noite silenciosa. E ao redor a mata, com seu zumbido que crescia, crescia, como se... a espreitasse. Abriu muito os olhos, assaltada por um medo súbito, a nítida impressão de que ia cair. A vertigem outra vez! Isto não pode acontecer agora, não agora que está ali sozinha, pendurada na crosta da terra. Se não se agarrar com força, vai se desgrudar e despencar no infinito!

— Não!!! — Senta-se, assustada.

Todos se levantam e olham para ela.

— Ah, você estragou a brincadeira! — reclama uma das crianças.

Clara se desculpa.

— Acho que cochilei e tive um pesadelo...


Pouco depois entram. O frio já se tornara insuportável. Comentam a beleza do espetáculo, excitados ainda, como meninos saindo de um circo. Apenas Clara está quieta.

Acendem as luzes a contragosto, com pena de macular com sua presença humana aquela noite primitiva e bela. Depois, sentam-se ao redor da mesa tosca, para jogar buraco. O frio os faz beber sem parar, sorvendo em grandes goles o vinho tinto de garrafão, acre, rascante. As crianças se divertem assando na lareira batatas-doces envoltas em papel laminado, que depois comem com melado, entre gritinhos e sopros.

O tempo passa. O jogo de buraco se arrasta, entre bocejos e esfregar de olhos vermelhos. Logo as crianças começam a cochilar nos sofás ao redor da lareira. No silêncio, ouve-se o crepitar da lenha, enquanto as chamas fazem dançar as sombras projeta das na parede. O velho cuco de madeira faz seu tique-taque seco, em meio ao lento arrastar das correntes que sustentam os pesos do relógio.

Súbito, ouvem passos lá fora.

Passos de alguém correndo em volta da casa, passadas rápidas e pesadas no cimento do passeio que circunda a construção. Entreolham-se, sem nada dizer. Clara franze o rosto. Levanta-se e já se prepara para abrir a por­ ta quando a dona do sítio a retém.

— Aonde você vai?

— Ver quem está lá fora. Quem pode ser, com este frio? — indaga.

— É melhor deixar para lá, Clara. Já ouvimos isto muitas vezes. Procuramos simplesmente não dar importância. É isto. É melhor pensar que não ouvimos nada. E depois, não sei... talvez sejam os cachorros — diz a amiga.

Clara senta-se, sentindo voltar o aperto no peito, na garganta. Cachorros... Tem certeza de que eram passos humanos. Não é possível! Devem estar querendo pregar-lhe alguma peça. Olha em torno. Onde está Clarice? Teria sido ela? Clarice não estava na sala. Fora lá para dentro havia pouco e não mais voltara. Clara anuncia que está cansada, que não tem mais vontade de jogar. Levanta-se outra vez. Vai até o corredor, mas logo se detém. As portas entreabertas lhe revelam a escuridão dos quartos e um frio de medo lhe percorre a espinha. Decide entrar no banheiro, o grande banheiro de azulejos pintados, que fica à esquerda, logo no início do corredor.

Acende a luz. Olha-se no espelho que toma quase toda a parede do banheiro. Chega mais perto, olhando-se. Decide retocar o batom, pois vê que seus lábios estão cada vez mais ressequidos pelo frio. Tira do bolso o batom que traz sempre consigo e começa lentamente a fazer o desenho dos lábios. É quando vê Clarice surgir às suas costas. Sorri para ela através do espelho. Mas Clarice está séria. Tem os olhos avermelhados, olhos de quem bebeu demais. Fica ali alguns segundos, em silêncio junto à porta. Clara a encara com ar interrogativo, o bastão do batom parado no ar.

— Onde você estava?

Silêncio.

— O que houve? — insiste.

Clarice a olha com seus olhos líquidos.

— Você já sabe, não é?

Clara franze o rosto, como quem não compreende.

— Sei o quê?

Clarice sorri e leva aos lábios o copo de vinho que tem nas mãos.

— Sabe, sim — diz. E desaparece na penumbra do corredor.


Clara entra na cozinha em busca de um copo d'água, a boca subitamente seca. Encontra a dona da casa, guardando pratos. Ela percebe a inquietação de Clara e sorri com doçura:

— Você já sabe, não é?

— Já sei o quê? — Clara recua.

— A história dos cajus. Clarice não lhe contou? Ela me disse que lhe contaria.

— Ah... não, ela não me contou — Clara retruca, confusa. — Qual é a história dos... cajus?

— Clarice me falou do cheiro que você sentiu na cachoeira — diz a dona do sítio. — Não é a primeira vez que acontece, sabia? Houve outros casos. Um dia comentei com a neta dele, a que nos vendeu o sítio, e ela me disse que ele tinha verdadeira loucura por cajus. Era sua fruta preferida. Talvez seja por isso que...

Pra mim chega! — corta Clara, com a voz alterada.

— Estou farta dessas histórias ridículas!

E sai da cozinha, batendo com força a porta atrás de si.


Na divisão dos quartos, Clara havia ficado com Pedro no cômodo ao lado de Clarice, que dormiria com os dois filhos. Só que, na hora de deitar, Pedro preferiu dormir com os outros meninos. E Clara acabou ficando com um quarto só para ela.

Não se importou. Talvez fosse até melhor, pensou, pois assim conseguiria dormir até mais tarde. Já havia recuperado seu bom humor e até pedira desculpas à dona da casa por sua irritação na cozinha. Afinal, tudo aquilo não passava de uma grande bobagem, não havia mesmo razão para se irritar.

Olhou o quarto à sua volta. Era aconchegante. Tinha cortinas de babadinhos feitas em tecido xadrez azul e branco, igual ao forro da cama. Móveis pesados, de madeira escura, assoalho de parquê desenhado, tapete de corda no chão. Sobre a penteadeira, um escovão antigo e um arranjo de flores secas, com pinhões. O abajur também tinha a cúpula quadriculada, mas logo percebeu, desapontada, que não tinha lâmpada.

Vendo a cama de casal, lembrou-se da história. Ouvira quando Pablito, o amigo dos donos do sítio, descrevera o quarto. Com certeza fora ali. Era aquele o quarto. O quarto dos suspiros. Seus olhos examinaram a cama vazia e pousaram nos travesseiros, primeiro um depois o outro, como se procurando adivinhar onde se deitara o fantasma. Mal conteve o riso nervoso ao pensar nisto. Devo ser muito impressionável mesmo, concluiu. Outra vez pensando bobagens. Encolheu os ombros e voltou a concentrar-se no abajur sem lâmpada, em dúvida sobre se valeria a pena ler com a luz de cima e depois ser obrigada a levantar-se para apagá-la. Decidiu afinal que não leria. Estava com tanto sono que não conseguiria ler mais do que duas páginas do livro.

Encostou a porta, apagou a luz e deitou-se. Logo seus olhos acostumaram-se à escuridão e ela percebeu a luminosidade que penetrava pela fresta embaixo da porta. Era a luzinha vermelha que a dona do sítio deixava acesa no corredor, para que as pessoas não se perdessem a caminho do banheiro. Sentiu um doce torpor envolvê-la. Vertigem? Suave vertigem de sonho, enredando-a pouco a pouco, como um novelo de lã, macio e quente.


Bruma, névoa. Vertigem. Suave vertigem de sonho, enredando-a pouco a pouco, como um novelo de lã, macio e quente.

Agora tudo é silêncio. Clara não se move, não pode fazê-lo. É um ser sem vontade própria, envolto pela escuridão que o acolhe. Nada vê. Mas todo seu corpo está à espreita, aguardando, pressentindo. Súbito o silêncio é rompido por um rangido de porta e Clara sente seu corpo ser golpeado pelo sopro do ar frio. Está chegando. Seu coração pára ao perceber a aproximação da presença assombrada. Ouve os passos imateriais, murmúrios, suspiros. Continua imóvel, como se a noite a atasse.

De repente, sente o toque das mãos, primeiro em seu rosto, depois descendo lentamente pelo pescoço, pelos ombros. Nos vapores da noite, o hálito espectral se aproxima, buscando-a. Continua inerte. É um sonho estranho, feito apenas de tato e cheiro. Arrepia-se, estremece. Pensa que é preciso abrir os olhos e encarar a presença assombrada, mas não o faz. Apenas se mantém à espera, imóvel e silenciosa, para que ela a possua, envolvendo-a no ectoplasma daquele amor proibido. Assombração, fantasma, espectro, fino tecido translúcido vindo de outro mundo, emergindo das sombras, para tomá-la. Tremendo de pavor e desejo, Clara se entrega.

Está agora presa na teia mágica de longos fios, cabelos de seda com cheiro de almíscar que a encobrem e rodeiam, formando a doce tenda que abrigará o beijo, afinal. Sim, o beijo. Lábios carnudos e molhados que tocam os seus, primeiro suavemente, depois com mais e mais ardor, molhando, sugando, buscando, explorando-lhe a boca, sorvendo-lhe a língua, bebendo-lhes a saliva com louca paixão.

O beijo vai agora tomando posse de todo seu corpo, sanguessuga que a percorre inteira, vencendo as formas, subjugando a matéria, acendendo-lhe, com seu sopro, imaterial, o fogo do mais louco desejo. Cada parte de seu corpo é uma cidadela que cai ante a fúria daquele beijo úmido e quente, que transforma tudo por onde passa em chama acesa. Seus seios se entregam e, mal são tomados, já seu ventre se arqueia na busca do contato com aqueles lábios que a devoram como animais selvagens. Logo toda ela é uma flor que se abre para revelar seu mais secreto perfume, essência da fenda misteriosa onde o beijo vai penetrar para sorver-lhe a alma. Aroma, néctar, pólen, mágicas poções do amor, todas as delícias que ali se escondem já não são suas, perderam-se na morna mistura de saliva que lhe inundou o ventre, torrente caudalosa que a arrebata, arrastando-a por mares e rios, arrancando as folhas das margens, tomando tudo, tudo dominando, para atirá-la no louco redemoinho do prazer, vertigem que a faz cair no infinito, tendo o céu a seus pés, como se mergulhasse num sonho dentro de um sonho.


Não, não está sonhando. Clara sabe. Sabe que já não precisa fugir, que é tudo real. E no entanto o medo cessou. Já não sente pavor ou inquietação. O cheiro doce do prazer impregnou o ar com suas essências eternas, que através dos séculos encharcam o leito dos amantes.

Clara abre os olhos.

Em meio à penumbra rosada que penetra pela porta entreaberta, ela vê o brilho dos olhos, derramando-se liquefeitos. Olhos vermelhos, como vermelha é a luz que as envolve. Olhos de Clarice. Sim, Clara sabe que não foi um sonho. Sabe que está presa na teia daquele amor de mulher, doce e proibido. Pressentira-o há tempos, lutara contra ele, fingira não vê-lo, mas agora já não pode fugir.

Está frente a frente com sua assombração.

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